E o Juruena virou música

Rede Juruena Vivo promove festival cultural na cidade de Juína e se reúne para discutir o futuro da bacia.

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Marcelo Manhuari Munduruku vence o concurso musical do II Festival Juruena Vivo. Foto de Carla Ninos.

Juína, MT – Nem mesmo a chuva de invernada que surpreendeu quem estava no noroeste de Mato Grosso em pleno mês de outubro tirou o brilho e a emoção do II Festival Juruena Vivo. O evento, promovido pela Rede Juruena Vivo e pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Juína com apoio de diversos parceiros locais levou à cidade importantes reflexões sobre o destino da sub-bacia do rio Juruena – ameaçada por atividades predatórias e a previsão da presença de mais de 102 hidrelétricas, entre as planejadas, em construção e as já em operação. Quem quer ver esta região íntegra e sadia no futuro optou por tocar os corações por meio da cultura. E o Juruena virou música.

“Juruena caminho dos peixes/ Juruena caminho dos ventos/ Juruena caminho dos povos da Amazônia”, cantou Marcelo Manhuari Munduruku, que com este refrão contagiante e uma letra que levou parte do público às lágrimas, venceu o festival. “Desde criança eu cresci à beira do rio. Tenho intimidade com os temas que cantei. Aí foi só transformar os sentimentos em palavras e as palavras em poesia”, diz o autor.

Em segundo lugar ficou o reggae “Canção pro Juruena” de Mikael Henrique da Silva, que optou por um clima animado e descontraído para falar de assuntos sérios, como tarifa de energia, os atingidos por barragens e o respeito aos povos tradicionais. A canção “O paraíso é aqui”, de Cassio Fraitag, ganhou o terceiro lugar e evocou os diversos usos do rio Juruena, que mata fome, alegra a alma e refresca os dias quentes de quem vive às suas margens.

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O violeiro Victor Batista anima o público com delicadas canções sobre a natureza e o bem-viver. Foto de Andreia Fanzeres.

O júri que definiu os vencedores foi formado pelo arte-educador Herman Oliveira, a arte-terapeuta Gabriela Neves e por Victor Batista, cantor, compositor, arte-educador e violeiro autodidata que encerrou a noite com um show inesquecível. Através de suas composições delicadas e profundas sobre a vida do Cerrado, cantou o cotidiano de quem tira o sustento da terra, fazendo todos dançarem e cirandarem com sua viola encantada. Após o show, o artista prometeu levar a mensagem pela proteção do Juruena aos outros cantos do Brasil em suas turnês.

Evento de alto nível

“Foi um evento de alta qualidade artística”, avalia Liliane Xavier, militante do coletivo Aacuarela, que faz parte da Rede Juruena Vivo. A proposta de chamar as pessoas para discussão por meio da sensibilização foi elogiada por quem compareceu a Juína e prestigiou também a Exposição das Águas, com imagens inquietantes sobre a história de degradação dos rios brasileiros e as riquezas da bacia do Juruena, clicadas pelos fotógrafos Adriano Gambarini e Thiago Foresti.

Com imagens de Adriano Gambarini e Thiago Foresti, a Exposição das Águas levantou discussão sobre futuro do rio Juruena. Foto de Carla Ninos
Com imagens de Adriano Gambarini e Thiago Foresti, a Exposição das Águas levantou discussão sobre futuro do rio Juruena. Foto de Carla Ninos

“Esta exposição chama a atenção para como estamos tratando os nossos rios, fontes de vida no Brasil. O ranking do IBGE apresenta os dez rios mais poluídos do país por lixo industrial, agrotóxico, esgoto, barragens… e essas imagens chocantes contrastam com a beleza do Juruena. Desenvolvimento precisa ser sinônimo de morte dos nossos rios? Esta é a reflexão que esta exposição deixa para quem a visita”, comenta Andrea Jakubaszko, organizadora do evento e membro da Rede Juruena Vivo.

Paralelamente aos shows acontecia também a feira de produtos da agricultura familiar e arte indígena. Sob as tendas no Centro de Eventos de Juína era possível encontrar óleos e farinha de babaçu, própolis, mel, biscoitinhos e até macarrão de castanha-do-Brasil, barras de cereais, buchas vegetais, publicações distribuídas gratuitamente sobre gestão territorial indígena, ICMS Ecológico, mudanças climáticas, além de colares, anéis, brincos (de tucum e miçanga) e ornamentos indígenas, em geral.

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Veridiana Vieira apresenta seus produtos na feira livre durante o II Festival Juruena Vivo. Foto de Carla Ninos.

Mesmo com todas essas atrações, ainda é preciso insistir para que a população local se sinta mais estimulada a participar. “As pessoas geralmente não estão acostumadas a refletir sobre o espaço em que estão. Mais gente precisava ter visto e vivido tudo isso”, diz Liliane. “Quando a gente começa a abordar esse tipo de assunto, as pessoas têm um pouco de resistência. Mas quando elas se permitem, não tem como sair dessa experiência da mesma forma”, completa.

Desenvolvimento social é outra coisa 

Este é realmente um dos desafios da Rede Juruena Vivo nos próximos anos: garantir acesso à informação para viabilizar a participação popular na valorização e proteção do Juruena sobre as políticas públicas que afetam as comunidades. “A informação tem que circular. E este é um tema complicado, em que a população tende a se recuar pela desinformação. O que discutimos nas mesas promovidas durante o festival precisa ser difundido massivamente”, recomenda Cleiton Silvestrim, presidente da Associação de Moradores de Fontanillas, também componente da Rede Juruena Vivo.

Para conversar sobre o futuro da bacia do Juruena, a organização do evento chamou Daniel Rondinelli Roquetti, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam/USP), grupo que reuniu valiosos dados sobre todos os municípios alagados por barragens no Brasil. Isso permite a realização de diferentes análises que ajudam a elucidar uma questão que é propalada pelos governos como absoluta certeza: afinal, as hidrelétricas induzem ao desenvolvimento local? Essa análise comparativa demonstrou, a partir dos principais indicadores sociais analisados, que, ao contrário do que se imagina, não há melhoras no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desses municípios.

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Andrea Jakubaszko abre as discussões diante dos membros da Rede Juruena Vivo. Foto de Dafne Spolti.

“O que percebemos é que, comparados a seus vizinhos regionais, os municípios que abrigam as usinas passam por uma aguda transformação social. Há muitos casos em que é claro o aumento da prostituição, de doenças sexualmente transmissíveis, do consumo de álcool e drogas. Temos a hipótese de que o único momento em que o governo pensa no desenvolvimento local é durante a implantação de obras de infraestrutura”, explica Roquetti.

Além dessas discussões, o Festival apresentou oportunidades para os municípios prosperarem ambiental e socialmente sem arriscar seus mais importantes ativos naturais. Algumas das apostas é investir em uma maior participação e influência sobre o Programa Mato-grossense de Municípios Sustentáveis ou por mais adesões e pressões a favor de fontes energéticas, como a solar. “Ou nos damos conta e conseguimos mobilizar a população para produzir a energia que precisamos sem mexer nos rios da Amazônia ou a Amazônia vai-se embora junto com seus rios”, diz Ivo Poletto, da Campanha Nacional Energia para a Vida. Junto com o engenheiro eletricista Joilson Costa, da Frente por uma Nova Política Energética para o País, eles apresentaram a intensa mobilização nacional para diversificação da matriz energética brasileira e as grandes oportunidades da microgeração distribuída de energia.

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Cleacir Sá, moradora de Brasnorte, expõe relevantes questões sobre o papel das comunidades no controle social. Foto de Dafne Spolti.

“Nós vamos levar toda essa informação que estamos vendo aqui para conhecimento da nossa região através da nossa rádio comunitária e das salas de aula”, afirma Gilmar Schmitt, professor no Projeto de Assentamento (PA) Tibagi, no município de Brasnorte.

“Vida para nós, indígenas, é liberdade. É poder remar, poder nadar e ensinar a nadar. Nosso rio Juruena, o Arinos e o Sangue já estão assoreados por causa das grandes lavouras que se instalaram. Nossos filhos vão chorar por falta de água e nossa liberdade vai acabar. Estão iludindo os líderes indígenas. Alguns, por ganância, entregam nossa identidade, a nossa liberdade. E assim vai a nossa cultura. Estou preocupado, estou na luta. Não vamos esperar de braços cruzados!”, conclamou o professor Paulo Skirip, do povo Rikbaktsa.

Para se fortalecer, a rede pretende estruturar melhor seus grupos de trabalho a fim de multiplicar a capacidade de as comunidades receberem e transmitirem informações cada vez mais qualificadas. E isso deve acontecer por meio da constituição do que têm se chamado “Núcleos Olhos d’água”. “A Rede está se articulando de forma bacana, mas tem que trabalhar ainda sua organicidade, amarrando também os acordos com o poder público”, diz Silvestrim.

“No PA Juruena queremos formar um núcleo, é a segunda vez que participamos deste Festival tão bonito e se não nos prepararmos vamos ficar debaixo d’água”, diz Veridiana Vieira, liderança do PA Juruena, no município de Cotriguaçu.

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Elani Lobato, professora no distrito de Fontanillas, reclama direito de comunidades ribeirinhas serem ouvidas nas tomadas de decisão. Foto de Dafne Spolti.

“Desde que ouvimos pela primeira vez que iriam construir hidrelétricas no Juruena, em 2008, não fomos chamados para nenhuma discussão. Não aparecemos nos mapas. Nunca fomos ouvidos. E foi aqui que a história de Juína começou”, diz a professora Elani dos Anjos Lobato, moradora de Fontanillas há 21 anos.

Essa é uma percepção recorrente. Quando a população é chamada para a discussão, a pauta costuma ser compensação e mitigação, mas não prevenção, definição de agenda de desenvolvimento propriamente dita porque a decisão já está tomada. “Nos estudos de impacto da usina de São Luiz do Tapajós não havia nada sobre as populações afetadas. Essa parte vai entrar depois como anexo!”, lembra Ivo Poletto. E é isso que, na bacia do Juruena, a Rede pretende evitar. As comunidades ali reunidas e representadas, definitivamente, não querem ser tratadas como anexo.

Andreia Fanzeres